domingo, 24 de janeiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XIV)


ENTREVISTA com Dr. Senna Fernandes (cont.)

Tinhamos falado de ar livre, de passear pássaros, de tranquilidade, quase de poesia...


Afinal, sejamos objectivos, desta convivência racial o que é que vai permanecer?

Não sei dizer-lhe. Todos fazem a mesma pergunta... Macau sempre viveu esse cruzamento de raças. Tudo depende do respeito mútuo. Se a presença portuguesa diminuir muito, pode correr-se o risco de desaparecer. Cabe aí o respeito pela Declaração Conjunta e cabe ao governo da República proteger a presença portuguesa no território.

Se a República Popular da China não respeitar os termos da Declaração Conjunta, pronto, não se pode dizer mais nada... Não basta só a China respeitar, corre-se o risco de a população daqui se tornar menos agradável... Mas se Portugal não quiser saber, depois de muitas promessas a dizer que é um desígnio nacional, ainda resta ver, depois de tanta desilusão, se se mantém o chamado desígnio nacional... Portugal tem que olhar (sempre) para a população que fica e que é o único garante da sua presença...

Porque não é a República mandando dez, vinte ou cinquenta pessoas por quatro ou cinco anos, que depois abalam, que não se casam cá, que não ficam aqui, considerando isto a sua terra, que são o garante da presença portuguesa. Somos nós, nós, os macaenses, que
personificamos essa presença. Não são os portugueses da República que vêm cá e estão sempre em maioria. Somos nós que sentimos que esta é a nossa terra, para a qual Portugal tem que olhar, criando escola, a tal escola portuguesa, alimentando sempre (!) a nossa cultura.


(quebro aqui (!!!) esta entrevista para, depois do telejornal que ouvi há pouco, dizer que, nunca tendo pensado nisso, "verifiquei" (tenho a idade que sabem, se têm lido "isto"...) que se, com base na nova legislação, duas mulheres casarem para VIVEREM EM COMUM, podem, graças à inseminação artificial,"ter"e "educar" à volta da mesma mesa, cada uma seu filho, com eventual origem em "pais" diferentes (???)...

Que as crianças rebentem as águas, claro, é um direito...Mas em que clima social? Com que educação vão viver? Que universo vai ser o seu? Como vão interagir na sociedade?...Que cultura? Sociedade multicultural, porque multivaginal NO MESMO agregado? Para quê estas entrevistas, para quê tudo?...

Porra! Desculpem: porra para isto! Está tudo doido! Ou sou eu que estou velho?... Peço desculpa pelo "intervalo", pelo insólito... Embora...)


... Fale-me um pouco da língua e cultura portuguesas em Macau...

Tem sido um erro de base ensinar-se Português como se os alunos daqui fossem os alunos de Portugal. É um erro!!! Devia haver compêndios especiais... Mas como somos "meia dúzia", Portugal nunca se importou... É frequente ouvir-se dizer que em Macau fala-se mal o português. Mas há muita gente que compreende a nossa língua. Há professores e professoras que dizem às crianças: "tu não sabes português!..." O aluno, desde pequeno, fica complexado em relação à nossa língua. Porque tem medo de falar mal e não gosta de perceber que os outros se riem dele. O que é que vai fazer? Se a mãe é chinesa, e os companheiros também o são, quem é que a pode censurar? É chinês.

Em minha casa sempre falámos português, em detrimento da língua crioula, o "patois", que os meus pais proibiram que falássemos...

Porque é que proibiram o "patois"?

Porque foi considerada, a certa altura, uma língua que não tinha estatuto... Era ridículo falá-la. Subestimámos o nosso próprio crioulo. E disso o governo tem culpa...

Mas o "patois" tem, ou não, origem sentimental, enquanto meio para os namorados se entenderem: ela chinesa a querer falar português, ele, português, a tentar fazer-se entender?...

Como é que nasceu o "patois"?... Muito simplesmente: quando os portugueses vieram nos seus barcos trouxeram mulheres, mas não eram mulheres de Portugal, não eram brancas, eram mulheres de Goa, eram mulheres da Malásia, eram mulheres da Birmânia, dos vários pontos onde aportaram.Vieram até aqui e quando desembarcaram fundaram a cidade. Os chineses fecharam aos recém-chegados todo o contacto com a população nativa...

Quem é que faz a língua? Não é o homem, é a mulher. E tanto assim que nós dizemos a língua maternal... Porque é a mulher (ver "irritação" acima) que transmite a língua, que a ensina aos seus filhos, em casa.

Ora a mulher era de Goa, era da Birmânia, da Malásia, da Samatra, janavesa (tailandesa hoje). Esse grupo foi trazido nos nossos barcos. O Fernão Mendes Pinto foi muito esclarecedor neste aspecto social, das raças e em tudo o mais...

Então o "patois" nasce aí?...

Nasce da mulher que, para falar com o homem, distorce a língua. Ele fala português, porque não sabe outra língua, terá que responder e distorce o que diz para um linguajar a seu jeito... Essa é que é a origem do "patois". E perguntar-se-á: então não havia contacto com as chinesas? Havia...do piorio: a camponesa, a escrava, a mulher do mar... Pode ver-se a origem do "patois" quando a mulher chinesa fala com o português. O português que ela fala é uma mostra do que foi o nascimento do "patois". Há uma letra que os chineses têm muita dificuldade em articular: R. Eles não pronunciam o R... A terra, a guerra, dizem tera, a guera. É claro, faz-se muita troça disso, mas, localmente, a criança não pode, a não ser muito, muito castigada pronunciar erres. O cantonense não tem R. E outra língua que influiu em todos os portugueses é o inglês (nós aqui acabamos por ser trilingues...).

O inglês também não tem o R carregado, só o irlandês e, talvez, o escocês... Mas o inglês, verdadeiramente, também não tem. E, portanto, a criança, quando nasce, ouve da criada, ouve da mãe, se é chinesa, mas não ouve o R. O pai não tem tempo...

É claro que o meu pai, a minha mãe, nós, tivemos outra educação e, desde pequeninos aprendemos essas coisas todas... Mas sabe-se lá o que se terá castigado também, naquela época, que a minha memória não regista, para pronunciar os erres...

Pode citar-me agora nomes de continentais, ou de portugueses de Macau, que tenham marcado a nossa presença aqui e, a seu ver, porquê... Se quiser, desde que os Senna Fernandes são gente...

Para mim, um dos mais importantes foi Bernardino Senna Fernandes, meu bisavô. Exerceu várias funções relevantes em Macau. Foi um homem da segunda metade do século XIX, uma pessoa que teve uma grande influência. Junto dos chineses, também.

Seria, no século XIX, o que, mais tarde, foram outras pessoas. Os chineses actuais representam uma comunidade chinesa, etc, etc. Ele terá tido grande influência, fundou a Polícia, exerceu várias actividades...

Outro: Pedro Nolasco da Silva, uma grande figura que se interessou muito pela instrução dos macaenses. Temos as escolas municipais que, de resto, têm o nome dele: Escola Primária Pedro Nolasco da Silva, Escola Comercial Pedro Nolasco, etc.

O Vicente Nicolau de Mesquita, conquistador do Passaleão. Foi o homem que defendeu Macau, numa crise terrível, aquando do assassinato do Ferreira do Amaral.

Porque é que retiraram a estátua do Ferreira do Amaral?...

Fizeram bem. Se não a tivessem tirado, acabariam por tirá-la depois de 1999, com vexames. Assim foi discretamente... Custou-nos muito, mas... Não houve criança ou português enraizado nesta terra que não sofresse com a remoção da estátua. Quem entra em minha casa, "apanha" logo com o quadro de Ferreira do Amaral, a estátua de Ferreira do Amaral, num pôr-do-sol muito bonito...

Onde é que a puseram?

Deve estar guardada em qualquer museu. Foi difícil tirá-la. Estava muito bem agarrada ao chão...

Ficaria mesmo na frente do Banco da China...

Era um bocado complicado... De maneira que fizeram muito bem. Custou-me muito vê-lo sair dali, mas...o sentido prático...

A conversa tem decorrido solta: falámos de tradições, falámos do Natal... Outra tradição?...

Era o Carnaval. Já acabou. Era uma data vivida nos anos 30, até à Guerra do Pacífico. Depois, quando acabou a guerra, os traumatismos eram muitos, houve uma quebra...

Macau, durante esse conflito, foi zona de paz?!...

Relativamente... Foi zona de acolhimento. E zona de paz também...

Aqui não chovia metralha?...

Houve uma vez que eles bombardearam, mas bombardearam o hangar, lá fora, bombardearam o porto, mas sempre com as luzes acesas... Os aviões americanos passavam por cima de nós... Nos dias de luar, de repente, ouvia-se um zumbido... E os miúdos diziam: "mamã, mamã, o avião, o avião..."

Quando é que Macau ganhou direito à designação de "Sempre Leal"?

Foi com D. João IV. Aqui sempre foi içada a bandeira das quinas, nunca foi trocada pela família espanhola. E os espanhóis, mesmo nos 60 anos, com as Filipinas aqui ao lado, nunca tiveram grande influência em Macau. Havia muita gente de origem espanhola. Hoje há apenas descendentes. Está tudo muito disperso. Famílias em peso têm-se ido embora. Nós ainda aqui estamos...

Acha que Macau está descaracterizado por força do cruzamento de tanta gente ou Macau é isso mesmo?

Macau está descaracterizado pela ganância. A ganância é que deu cabo da cidade, mais nada...

Prédios de 30 andares desocupados...

É a ganância...

É a aposta em que futuro?

É aproveitar o espaço para construir, depois vender - pronto!...

Só?...

Só isso. Construiu-se de tal maneira que há inflação... Estamos em crise, porque a construção excedeu as necessidades imediatas, as necessidades normais do mercado.

Como é que, nesse contexto, vê a construção do aeroporto?

Vejo-o muito bem. Foi pena que só agora, nos últimos anos, se construísse. Já devia ter sido concretizado há muito, para evitar a dependência de Hong -Kong e acabar com aquelas formalidades exigidas à emigração. Sujeito a um qualquer funcionário que, se está bem disposto, despacha rapidamente, se está mal disposto, não quer saber se a gente fica ali horas ou não...

Acha que Camões vai ser, a título póstumo, nomeado cônsul ou embaixador de Portugal?

Não sei. Aqui nas escolas há muito respeito pelo Poeta. É possível que fique a tradição, mas...

Vão destruir o jardim Luís de Camões?

Não!!! O jardim do Camões não vão destruir... Os chineses gostam muito dos jardins...

.../...

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