sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XIII)


Com o prazer, o enorme prazer, dos actos voluntários (hei-de falar-vos disso... Leram o "Conversas Diferentes"?), trago-vos, a partir de hoje, mais um "Subsídios para a História": o que disse, em Macau, com um sorriso sábio e tranquilo, o escritor macaense Dr. Senna Fernandes...

ENTREVISTA com Henrique Senna Fernandes (cont.)


Toda a gente o conhece. Refira-nos, por isso, apenas uma síntese do seu "curriculum"...

Nasci em Macau, pertenço a uma das velhas famílias de Macau, senão a mais antiga. Devemos ter 250 anos de Macau. Os meus pais, avós, bisavós são macaenses. Tive antepassados europeus, antepassados chineses, goeses, muita gente, tanto do lado do meu pai como da minha mãe. Aliás, todas as famílias de Macau estão relacionadas com Goa.

Fiz os meus cursos primário e secundário em Macau e depois fui a Portugal, onde me licenciei em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Depois do curso segui com mais dois anos de estágio e voltei. E tenho estado, desde o meu regresso até agora, aqui, em actividade.

Tenho saído várias vezes para o estrangeiro e este ano já estive três vezes em Portugal. Agora que está o meu filho aqui no escritório, já deixei, praticamente, de advogar. Só pequenos casos, para o ajudar. E tenho-me dedicado às letras.

Sei que é um profundo conhecedor dos usos e costumes desta terra e não gostaria de perder a oportunidade de o ouvir acerca desse universo...

Há muitas facetas. É difícil de, mesmo em síntese, explicar o universo que é Macau. Apesar do território ser muito pequeno, é um mundo...

Vivemos praticamente isolados da mãe-pátria, Portugal. Os barcos vinham aqui de seis em seis meses e isso não chegava para nos actualizar em relação à vida portuguesa, a vida que se fazia em Portugal, no seu dia-a-dia. De maneira que tínhamos que resolver a vida com a "prata da casa".

Através dos anos vão-se criando, assim, costumes, tradições de afecto de raiz profundamente portuguesa. Baseadas, como é natural, naquilo que vinha de Portugal, de pessoas que aqui fixavam residência, porque antigamente não se chegava para partir logo, como nós fazemos agora graças aos aviões.

Uma pessoa quando vinha para Macau era por muito tempo. Os homens que vinham casavam-se depois aqui e cá impunham o cunho das suas próprias tradições, ensinando a mulher a viver segundo essas mesmas tradições, e ele também aceitando, com certeza, porque vinha de longe e estava noutro ambiente...

Tinha que aceitar, portanto, as tradições da própria mulher. Essa mescla de culturas foi criando um mundo que resistiu, não só ao isolamento, como à acção centrípeta da China, esse gigante que estava ao lado, que nunca conseguiu absorver a população de raiz portuguesa.

Nós, os macaenses, temos uma profunda capacidade de resistência e uma identidade muito diferente da chinesa, e mesmo da metropolitana, como se costuma dizer. Agora, com o aparecimento do Império, as palavras metropolitano e metrópole já perderam aquela força que tinham antigamente.

As tradições que eu possa contar... Por exemplo, o Natal tradicional: em minha casa fazíamos a consoada, mas uma consoada diferente de Portugal. Em Portugal faz-se a consoada com bacalhau, grelos, etc. etc. Nós não, nós não fazemos isso. Nós temos aqui em Macau uma sopa de aletria com camarão, com um condimento, mesmo local, chamado balichão, feito de camarões muito pequeninos e de vários ingredientes que desconheço e que dão à sopa um sabor típico... Há o balichão chinês e o balichão macaense. Podem comprar-se nas várias lojas. O que é conhecido como chinês, tem um cheiro penetrante. Não gosto muito... Mas o balischão à maneira macaense tem outro sabor, é delicioso. Mas hoje, infelizmente, belichão macaense é raro, só algumas casas é que fazem... Antigamente era uma coisa vulgar, todas as casas faziam...

Com a imigração e outras coisas mais, onde é que estão hoje esses ingredientes tipicamente da terra? Tipicamente macaenses. Porque há diferenças entre a culinária chinesa e a macaense. Falo do ponto de vista do macaense, não estou a falar do ponto de vista chinês. Estamos a falar de Macau de raiz portuguesa.

Entretanto, também a sopa tradicional de aletria com gambas corre o risco de acabar, porque as grandes donas de casa, as grandes cozinheiras de Macau estão a desaparecer com a idade... E as filhas e netas já não ficam em casa. Também não há casas com grandes cozinhas, já não existem os casarões onde nós viviamos... E assim, filhas e netas, foram perdendo o treino da cozinha, o gosto da cozinha, e fazem as comidas o mais rapidamente que podem, para despachar, porque não têm tempo, porque estão empregadas.

Mais...

Aqui em Macau há duas tradições: quando o pai constitui família na primeira geração, ou na segunda, mas sempre conforme a sua educação, segue a tradição do Menino Jesus; os outros, já com muitos anos, não podem fugir à influência inglesa de Hong Kong e seguem a tradição do Pai Natal.

O meu pai foi educado "à inglesa". Ele e os tios correspondiam-se em inglês e até falavam entre eles nessa língua. Mas nunca deixou de ser português. Também teve, quanto ao Natal, muitíssima influência inglesa: criámo-nos na tradição do Pai Natal. Houve discussões a respeito disso, sobretudo quando veio um governador muito ditador e que tinha a mania dos nacionalismos, etc, etc, das televisões portuguesas...Ficou escandalizado quando viu o Pai Natal a aparece nas montras, nas casas particulares, até nos Serviços de Estado...

Nos tempos "da outra senhora" bastava a voz do governador para todos tremerem...

A tradição católica mantém-se e vai perdurar?

A fé é uma coisa que, por mais que se combata, quando existe de verdade, é indestrutível... A República Popular, sendo agnóstica, ou ateísta, não conseguiu quebrar as tradições católicas da China, apesar das perseguições... É escusado...

Quer seja a fé em Buda, quer seja a fé em Deus... Ninguém a destrói, nem se destroem uma à outra, é?...

É. Temos é poucos católicos em Macau. Mas isso é outra conversa... No Natal, em minha casa, a ceia é com canja de galinha. Não temos bacalhau, mas não é aquele bacalhau com grelos, etc. Faz-se um bacalhau com natas ou outra coisa qualquer...

Mas há bacalhau!...

Em minha casa fazia-se sempre bacalhau. A minha mãe gostava muito e nós gostávamos também. Mas há casas onde isso não acontece. Não se come carne nesse dia. Depois da missa, então, começa-se a comer carne. Na ceia de Natal temos a galinha, depois há vários doces de Macau, que são típicos de Macau. Os coscorões, os fartos, são doces próprios do momento.

Também o "cake" do Natal, que é uma espécie de bolo de casamento, de influência inglesa. As preocupações com as crianças ajudam à festa.

No dia seguinte, Natal mesmo, têm lugar as visitas, mas isso é coisa quase acabada... Antigamente, eramos obrigados a visitar todos os tios, todos os avós, era "uma terrível...", mas hoje essa tradição acabou porque não temos casa para receber melhor, não vivemos em casas separadas, é tudo em andares... Tudo isso quebrou... Apesar de tudo, em minha casa, como sou o mais velho, consigo reunir a família toda. À volta de 20/30 pessoas.

1999 não vai acabar com essa reunião de família?...

Em 1999, se as famílias abalarem...acaba-se... Não se sabe quantos ficam e quantos partem ... Devem partir muitos, mas também devem ficar bastantes...

A família Senna Fernandes, fica?

Não sei. Eu não devo ficar. Porque já terei na altura idade um pouco avançada e temo ficar afectado psicologicamente com a mudança em que nunca acreditei... Aqui fui "menino e moço" e jamais pensei que a minha terra pudesse passar para outra bandeira. É uma coisa que custa a...
Voltemos a recordar tradições...

No Natal bebe-se e brinca-se até à meia-noite e mais. Naquela semana toda continuam as visitas. Chega-se ao Ano Novo, no dia 31, há o Te Deum, as igrejas ficam cheias às cinco e meia da tarde, conforme as igrejas. No dia um já não é tão importante... Começa com a missa, de manhã, como noutros dias do ano. O dia 31 é que é importante, sobretudo o Te Deum, às cinco, para agradecer a Deus termos vivido até aí e esperando que o Novo Ano nos seja propício.

Não deixam de comemorar o Novo Ano Chinês quando ele vem...

O Novo Ano Chinês é em fins de Janeiro, princípios de Fevereiro. São três dias de festa em que os macaenses se integram também. Eu estou casado com uma senhora chinesa e cedo igualmente às tradições. Ela aceita as minhas tradições, porque não haveria eu de não aceitar as tradições dela?!...

Antes de chegar o Novo Ano Chinês, compram-se flores, crisântemos, tanjerinas pequenas, e outra flores, e um ramo de pessegueiro, que ainda está em botão e que se espera que abra na noite do Ano Novo Chinês...

E se não abrir?...

É mau!... A minha mulher seguiu essa tradição, mas, há dois anos, deixou de comprar o ramo de pessegueiro, porque houve um ano que não abriu e, por coincidência ou não, esse ano não correu bem. E ela decidiu: "para o ano não faço isso..." E, portanto, deixámos de comprar o ramo de pessegueiro. Mas eu tive pena...

Gostava que me falasse de duas práticas muito comuns, de manhã, nos jardins e praças de Macau: um certo tipo de ginástica ao ar livre e o passeio dos pássaros...

É uma das diferenças. A primeira, trata-se de uma ginástica de que muitas pessoas troçam.É executada em ritmo lento, mas tem a sua ciência. Produz relaxação muscular e um sentimento de paz. Há um ou outro português que a faz na sua casa, discretamente. Aquilo é uma coisa chinesa e ele não quer confundir-se... Tenho, contudo, pena de não saber isso, porque se tivesse aprendido lucrava, por certo, um sentimento de paz, de tranquilidade, os músculos laços. É uma filosofia... É ancestral.

Outra coisa em que os chineses são mestres são as massagens. Nós, portugueses, temos o hábito, quando se fala de massagens, de pensar logo nas massagens das tailandesas... Não!... As massagens das tailandesas servem para muita coisa: para relaxamento dos músculos, para ajudar o sangue nas artérias a ter um ritmo adequado... Fazem bem ao coração, quando estamos nas mãos de um ou de uma boa massagista. A massagista não é aquela de que temos sempre uma ideia pornográfica, em que tudo termina na cama, na fornicação... Não é nada disso. Os chineses são extraordinários, são técnicos nisto. Há uma senhora que vem todos os dias a minha casa, de manhã e, durante uma hora, faz-me essas massagens. Tenho-me sentido muito bem!

E a cena dos pássaros?...

Os chineses gostam muito de jardins. Esses pássaros nas gaiolas, no fundo, traduzem também um sentimento de paz, de estar em contacto com a Natureza. Pintassilgos, melros, etc. Mas já rouxinóis, não. Muitos deles são criados para combater. Há combates de rouxinóis em que, aquele que perde, nunca mais pode combater... Fazem-se apostas fortíssimas. Mas, a maioria, leva o pássaro a passear, pendurando a respectiva gaiola num ramo e deleitando-se a ouvir a melodia do piar libertado no meio da folhagem toda. É, contudo, tarefa para os homens. Não se vê uma mulher a passear pássaros.

Então, com essa "passividade", com essa tranquilidade, dir-se-á que os macaenses, que são gente, não são pássaros, portanto, mais importantes, não têm que recear qualquer hostilidade depois de 99... Ou é uma pessoa dois "sistemas"?...

Andar no jardim a passear pássaros não quer dizer que não tenham os seus dogmas... O facto de um grupo social ter esse comportamento com os pássaros não quer dizer que...

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