segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XI)


ENTREVISTA com Celina Veiga de Oliveira (cont.)

Acha que, depois de 1999, a título póstumo, Camões vai ser "cônsul honorário" de Portugal?

Tenho-me interrogado sobre isso... Como se sabe, é tradição celebrar-se, em Macau, o 10 de Junho.

Depende um bocado daquilo que os chineses entendem. Governantes e a própria população. Nós também não contribuimos muito para criar na população chinesa de Macau uma grande ligação aos valores culturais portugueses. Estamos a tentar agora, nestes últimos anos (não sei se vamos a tempo!...)... Mas se as pessoas de Macau se consciencializassem de que é preciso preservar tudo quanto é diferente, tudo quanto dá um carácter diferente a Macau, penso que essas romagens à Gruta de Camões feitas pelas crianças das escolas se manterão. De facto, não nos podemos esquecer que Camões tem um grande significado para nós ocidentais e para nós portugueses, em especial, mas a China também tem grandes poetas, tem, em termos de valoração poética, tão grandes homens como Camões.

A China é rica em valores culturais e é uma nação com peso cultural muito grande, com o peso milenar da história. Penso que as autoridades de Macau, se forem autoridades que tenham nascido aqui em Macau, com raízes aqui no território, vão fazer os possíveis para preservar... Interessa-lhes porque é também uma afirmação da diferença em relação a possíveis autoridades vindas de Pequim.

Portugal tem sido, em Macau, missão, pimenta, aventura, o quê?...

Tudo isso!... Um bocado missão, sim, até porque no século XVI existia aquele espírito de militância religiosa que a nós aqui hoje tanto aflige, em relação aos fundamentalismos islâmicos... Também era um bocadinho, não diria com este recorte, mas também era um bocadinho o dos missionários portugueses e espanhóis...

Pimenta, sim. É o comércio. Não tanto hoje em dia: o impacte comercial dos portugueses é nulo. Quem tem dinheiro são os chineses, não os portugueses. A comunidade chinesa é que é rica, a comunidade portuguesa é uma comunidade de serviços, é uma comunidade mais radicada na função pública. Portanto, nós não temos expressão económica nenhuma.

Aventura, sim, porque cada pessoa tem um destino. Há milhões de destinos no mundo... Muitos dos nossos destinos individuais, enquanto portugueses, poderão também ter passado pela aventura...

A partir de 1999 vai jogar-se em Macau?

Julgo que sim. A China não vai parar a "galinha dos ovos de ouro..." Donde é que vêm as receitas?!... Eu acho que 40 a 60% das receitas da Administração provêm do jogo!... Então por que é que os chineses haveriam de acabar com isso?!... Eles até podem fundamentar a continuação do jogo numa atitude muito pragmática: "nós queremos que Macau seja diferente, é uma região especial, um país dois sistemas. Portanto, se Macau sempre viveu do jogo, porque razão é que vai deixar agora?!... Não senhor, em Macau tudo vai permanecer igual durante cinquenta anos." Eles têm uma boa justificação pragmática para continuar as coisas como estão.

E, portanto, as casas de penhores...

Ah, sim, sim!... Estou convencida de que, naquilo que der dinheiro, não vão alterar.

Daqui por 100 anos seremos a Malaca desta zona?...

Julgo que não. Porque a comunidade portuguesa que, eventualmente, possa aqui ficar, vai misturar-se de tal forma com a comunidade chinesa que perderá muitas das suas características. Aquela mais arreigadamente portuguesa, com mais marcas culturais nossas, ficará aqui uma ou duas gerações, depois, como é natural, irá para Portugal ou irá ter com a parte da família que esteja, por exemplo, no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália. Os portugueses que ficarem serão portugueses sempre vivos... Vivos em que sentido? Pessoas que, eventualmente, vêm fazer comércio, comprar para vender em Portugal, que vêm participar nalgumas firmas portuguesas que fiquem aqui... Embora isso seja difícil depois da nossa Administração.

Julgo, por isso, que esse "guetto", como existe hoje em Malaca e que até é triste, segundo me dizem, não vai acontecer aqui...

O aeroporto de Macau será, em relação ao de Hong Kong, complementar, concorrente... Qual é a visão que tem dessa situação?

Concorrente não será... Como sabe, os ingleses já estão a construir outro grande aeroporto. O actual está completamente afixiado, mas o que vai ser é complementar. Para os portugueses é, necessariamente, porque nós vamos ter que deixar de ter que ir para Hong Kong, demorar tempo no "jetfoil" e andar naqueles serviços alfandegários, etc. Para nós, vai ser muitíssimo melhor, porque é muito mais prático. É talvez o facto mais significativo da autonomia de Macau. Em relação à China, em relação a Hong Kong.

Qual é o segredo do crescimento chinês?

Faço muitas vezes essa pergunta a mim própria...

Alguma coisa está ficar para trás para que o crescimento seja assim?...

A China é um país riquíssimo. O subsolo chinês foi uma das grandes razões da atracção dos japoneses. Os japoneses do século XIX, quando se deu a afirmação do imperialismo nipónico, uma coisa que diziam era "mas porque razão é que nós somos um arquipélago com tão pouco terreno e tão pobre e temos diante de nós um império tão rico, tão vasto, com um povo tão abúlico?..."

Era a visão imperialista dos nipónicos... E essa abulia, de certa forma, explica-se pelo ópio do século XIX. Mas a China é um país espectacularmente rico e sofreu no século XX um processo de regeneração imparável. Libertou-se do jugo japonês, libertou-se do jugo da droga, libertou-se também do jugo do próprio império chinês, de todas aquelas torturas políticas que faziam com que a sociedade estivesse super-hierarquizada, aliás, de acordo com as normas confucianas, que é o aspecto absoluto pelas hierarquias: nada é contestado, tudo é aceite.

A revolução maoista, pese ainda o facto de se concordar ou não com Mao Tze Tung, foi uma revolução regeneradora para a China.

Infelizmente, teve excessos enormes. O próprio povo chinês sente isso. Teve excessos durante a Revolução Cultural, que durou, praticamente, dez anos e devastou, aniquilou e destruiu património, documentos, toda a intelectualidade foi posta em causa. Destruiu muitos dos valores antigos. Mas a Revolução Maoista acaba por surgir, de facto, como o processo quase necessário, diria, para a grande obra de renegeração do povo chinês.

Estou convencida de que, com a capacidade que este povo tem de criatividade, perseverança e trabalho, fará da China uma grande potência no século XXI. Mas tem muita coisa a limar em todos os campos, embora, como é evidente, haja ilhas de progresso, há muitos sítios que ainda vivem num grande marasmo. A China é enorme, tem mais de um bilião de pessoas...

Como é que eu compro um artigo em Lisboa, um artigo simples, por cento e pouco escudos, que foi importado pela Inglaterra e depois chega a Portugal para ser vendido - e ainda se compra barato?...

Todas as edições da China, por exemplo, são muitíssimo baratas...Quando os portugueses descobrirem o filão que é editar livros na China, pode haver uma revolução na própria imprensa portuguesa. Porque se houver contactos entre portugueses e chineses para certos livros portugueses serem impressos na China... É tudo mais barato, a mão d'obra é barata, a impressão é tão barata, é tudo tão barato que faz descer radicalmente o preço dos livros. Há já quem esteja a pensar nisso...

Então e a Comunidade Europeia como é que vai ver-se neste "imbróglio"?

Tem que se ajustar ao mercado mundial...

Mas a China já está a produzir com qualidade?

Em certos campos, a China já está a apostar na qualidade. Quando cheguei a Macau, em 1980, e fui pela primeira vez à China, em 1981, a minha visão do país era uma visão que posso qualificar de partidária, ideológica... As pessoas ainda se vestiam todas à Mao, ainda usavam aqueles uniformes azuis escuros, horríveis, que estavam de acordo com o imaginário que tinhamos da China.

Mas quando, passado pouquíssimo tempo, começámos a ir a Cantão, as pessoas já se viam em fato de treino e com ténis de marca. Hoje a gente vai a Cantão - é evidente que encontra muitas bicicletas... - mas, de qualquer maneira, vê os cantonenses vestidos como nós, com uma bolsinha à cinta como se fossemos nós...

Quer dizer que o consumismo já lá chegou... É evidente que Cantão é uma cidade com características especiais, porque está aqui no Sul. Foi sempre, historicamente, uma cidade aberta ao exterior. Foi através de Cantão que fizemos o comércio com a China. É uma cidade habituada ao contacto com o exterior. E está no litoral...

Face às mudanças anunciadas para 1999, quais são as expectativas dos macaenses?


( "Estou a ficar chinês..." Progredirei em breve...)

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