quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XVI)


ENTREVISTA com António Conceição Jr.



Fale-me de si...

Apenas gostaria de me definir como um português, outro que não europeu, ou melhor, um português asiático. A minha existência serve também para tecer o elogio, no sentido que entendo como sendo o real sentido da portugalidade. O sentido universalista e humanista da portugalidade. Gostaria de me definir apenas assim.

Apetecia-me pedir-lhe, enquanto homem da Cultura, que dissesse o que é que, a seu ver, singulariza Macau das regiões vizinhas?

É uma pergunta extraordinariamente oportuna. Enquanto macaense, isto é, nado em Macau, não criado apenas em Macau, acho que o que singulariza esta terra é, exactamente o oposto daquilo que as pessoas pensam em regra...

Macau não é, nem pode ser, a preguiça de um "cliché".

Macau está geograficamente situado na China e é, indeclinavelmente, indiscutivelmente, geograficamente, China.

Mas o que distingue Macau do resto desta geografia é a presença portuguesa. Presença portuguesa essa que se foi legitimando ao longo dos séculos, exactamente, através dos luso-descendentes, que são os macaenses que, pelo comércio, fizeram de Macau, juntamente com Veneza, no século XVII, os dois maiores, e mais ricos, portos e entrepostos, do mundo de então, fonte de riqueza que (comércio com o Japão) depois, durante 60 anos, desapareceu, mas cujas reminescências ainda hoje surgem, enquanto marcas arquitectónicas, por exemplo, em velhos palacetes, de grandes e abastadas famílias macaenses.

Portanto, foi através destas famílias que a cultura portuguesa se pôde legitimar e naturalizar, porque eu penso que o que enriquece extraordinariamente uma cultura é a sua capacidade de se desdobrar noutras.

A sua pergunta é de um grande felicidade porque permite, imediatamente, de facto, desmistificar a ideia de que Macau é uma musiquinha de fundo chinesa. Macau é muito mais do que isso, mas é, sobretudo, como tive oportunidade de dizer, uma subtileza que precisa de ser decifrada.

Decorridos estes séculos de convivência cultural, racial, se quisermos, o que é que vai permanecer depois de 99?

O que vai permanecer é difícil dizer. O que é certo é que as informações e os contactos que mantenho com a China, levam-me a indicar que, pelo menos, no sul daquele país, existe uma relação de afecto com Macau.

Mas Pequim manda...

Pequim manda... No entanto, Pequim também está muito longe, e o que, na história da China, sempre contou foi a distância. Contudo, parece-me que a presença portuguesa em Macau pode vir a ser potenciada pelos chineses - e isso contra a falta de uma estratégia organizada a longo prazo, coerente, pela parte portuguesa, desde há séculos, com abandono da India e do Extremo Oriente pelo Brasil.

Esta falta de estratégia, que se foi prolongando ao longo de séculos, terá de ser, necessariamente, colmatada, por um lado, pela benevolência e pelo extraordinário pragmatismo que tenho que reconhecer nos chineses, mas, sobretudo, também pela formulação urgente de uma estratégia que possa permitir a nossa permanência no que é fundamental.

Uma coisa que Almada dizia, e muito bem, é que havia que distinguir Cultura e Civilização, sendo que a Civilização antecede a Cultura. E, de facto, o que distingue Macau do resto da China é, exactamente, uma matriz civilizacional, uma matriz urbana que é radicalmente oposta àquela que surge em Zuhai, a 50 metros de Macau. É completamente diferente.

Esta estratégia passa pelo seguinte: Portugal tem algo a dar, a China tem algo a receber e algo a dar.

Macau deve ser entendido na sua dimensão real: Macau entreposto. É, fundamentalmente, um entreposto, sempre o foi em todos os tempos. O que é importante é transformar esse entreposto comercial de então num entreposto de serviços, num entreposto cultural. Porque, repare-se, quando se fala na defesa da língua portuguesa, perante um país que é o país com uma cultura e uma civilização contínuas mais populoso do mundo, é um bocado estar contra moinhos de vento...Ora, é preciso adoptar uma atitude pragmática nisto e a leitura que eu faço desta situação é remontar às origens e invertê-las num sentido construtivo.

Juntamente com os mercadores, veio a Igreja, portanto, juntamente com o comércio, veio a cultura.

Neste momento, a cultura só pode permanecer se existirem bolsas comerciais portuguesas que permitam assegurar, por um lado, soluções alternativas para a crise económica portuguesa, pela abertura de novos mercados - enormes, incomensuráveis em relação à escala europeia. Por outro, exactamente porque essas bolsas culturais exigirão a permanência e a fixação de muitos macaenses e, ao mesmo tempo, servirão de solução para problemas da economia portuguesa.

Daí que eu não possa distinguir, em termos estratégicos, cultura, civilização e interesses comerciais, porque nós sabemos que as línguas são comandadas, sobretudo, pelos interesses económicos. As línguas oficiais da ONU são aquelas que o comércio internacional determina e que as influências políticas mais determinantes obrigam.

Mas então podemos fazer alguma futurologia, dizendo que seremos, de alguma maneira, em Macau, mais do que, hoje, uma Malaca do Oriente?...

É assim: eu acho que Macau pode configurar-se neste momento na consciência portuguesa, isto é, ou Portugal assume e adquire uma percepção das potencialidades de Macau - e eu não falaria numa Malaca, mas falaria em Timor - ou Portugal tem uma percepção urgente e profunda da realidade, e eu estou convicto de que, neste momento, existem muitas condições para que isso possa acontecer, porque temos pessoas que conhecem a realidade de Macau.

Estou muito esperançado de que, com novo governo, tudo possa ser decifrado e que, sobretudo, haja uma redefinição da noção de Portugal e de portugalidade.

Portugal o que é, concretamente? É aquele "jardim à beira-mar plantado", Portugal é peninsular, ou Portugal é peninsular e dos emigrantes, ou Portugal é peninsular e é também dos macaenses, dos timorenses...

Fernando Pessoa?...

Fernando Pessoa é, exactamente, esse paradigma, como Camões. Sobretudo, Fernão Mendes
Pinto...

Fernão Mendes Pinto é o português-tipo?

Considerando, na verdade, que Fernão Mendes Pinto é o português-tipo que talhou a golpes de amor, mais do que a golpes... gerando, exactamente, outra formas genéticas de ser...


O macaense revê-se em Fernão Mendes Pinto?


Absolutamente, absolutamente!...


Sem complexos?...


Mas porquê? Porquê complexos?!... O desdobramento é sempre um enriquecimento.


Então, o que é que acha: Portugal tem sido, em Macau, missão, pimenta, aventura, o quê?...


Portugal tem sido, sobretudo, ao longo de séculos, ausência... Portugal tem sido, sobretudo, omissão... Portugal tem sido, sobretudo, desconhecimento...


Quando falo em Portugal, não falo em termos políticos, falo em termos de preocupações e em termos nacionais. Isto é, sem quaisquer conotações políticas, falarei de política quando entender e explicitarei que se não trata de política... Mas, de facto, se nós avaliarmos bem as coisas, Macau não faz parte do quotidiano dos portugueses e é importante que o faça.


Atrever-me-ia a dizer muito concretamente que sim... Porquê? Porque Macau é, de facto, e pode vir a ser uma charneira extraordinariamente importante em termos económicos para Portugal, em alternativa à Europa.


Perguntam-me se eu concordo com as comunidades europeias... Eu não concordo, nem discordo: limito-me a aceitar um facto que é indiscutível hoje em dia e, portanto, para mim, constitui uma gestão de emoções discordar ou não. Mas o que entendo é que Portugal se apresenta na corrida europeia não no melhor posicionamento. Donde, precisa de, com sabedoria, encontrar outras fontes, outras formas de equilibrar essa sua posição de desvantagem na corrida europeia.


Vou ser cáustico: 1961 trouxe África ao primeiro plano do pensamento português; Timor passou a fazer parte do quotidiano dos portugueses quando passou a haver sangue. Macau, nos últimos 10 anos, deu um pulo quando passou a pensar-se que "deixaria de ser..."


O que o penso é que esse abandono a que Macau esteve votado ao longo de séculos, não pode redimir-se em 10 ou 20 anos. Contudo, no próprio interesse de Portugal, diria que haveria todo o interesse em haver uma reflexão.


Reflexão sobre o que é a espiritualidade, isto é, se Portugal, espiritualmente, tem as mesmas raízes geográficas, ou não, que o Portugal geográfico. Isto é, se a espiritualidade portuguesa tem o mesmo confinamento que a geografia portuguesa.


Nesse sentido, atrevo-me a dizer que, de facto, foram cometidos alguns erros, mas que é importante que haja a percepção do futuro. Eu não tenho ilusões de que Macau só pode integrar a realidade portuguesa se emergir como algo de útil, porque as coisas são assim na vida e, nessa perspectiva, se as pessoas, se as instituições, tiverem uma percepção profunda da importância estratégica de Macau as coisas poderão ser diferentes.


Alguém, por quem tenho admiração, disse que Macau é uma charneira, uma dobradiça que transforma um pedaço de madeira numa porta... De facto, uma porta não é apenas um pedaço de madeira, a porta existe porque existem dobradiças... Portanto, Macau tem esta função de charneira e, estrategicamente, Portugal tem uma mais-valia na China, precisamente pela sua dimensão e pela sua insignificância no cenário político internacional. Isso é uma vantagem. É preciso saber tirar partido das supostas desvantagens e transformá-las em vantagens.


No caso da China, tive sinais disso, continuo a tê-los: a China teria o maior gosto em privilegiar Portugal no diálogo.


(em princípio, segunda parte, dia 01.02.10)

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