"Acuso-te de teres comprometido a minha situação no universo. Acuso-te de não me deixares ser infame. Acuso-te de me dares o remorso. Acuso-te de me impedires o instinto. Acuso-te de teres transformado a vida e criado a consciência. Acuso-te de me deixares sozinho com este peso em cima, com a ideia da vida e com a ideia da morte. Acuso-te de me levares para um calvário como o teu, para me tornares grotesco, e de colocares em frente de ideias com que não posso arcar. Acuso-te de não poder mais, e de instigares a mais ainda. De me obrigares a olhar cara a cara o assombro que não existe.
Subverteste-me o mundo. Forçaste-me a criar outro mundo, a olhar para cima e a clamar no vácuo. Acuso-te de não me deixares atascar à minha vontade em lodo, de não me deixares mentir, matar, chafurdar. Acuso-te de me impelires para cima, quando a minha vontade era ir ao fundo. Acuso de não me deixares ser bicho.
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Resta-me o bem. Mas fazer o bem para quê se tudo acaba ali, se não há vida consciente, se não tenho de responder perante ti pelos meus actos? E mesmo diante do escantilhão sôfrego, o que é o bem e mal? A que eu tenho de obedecer é ao instinto e mais nada. Se não estás aí para me julgar e para me ouvir, que importa fazer isto ou fazer exactamente o contrário?
Só uma coisa resta: iludir os desgraçados, levá-los para uma mentira cada vez maior para que possam suportar a vida. Não se trata do bem ou do mal, do justo ou do injusto - trata-se de mentir, de mentir sempre - de mentir cada vez mais."
Raul Brandão in Húmus
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