quinta-feira, 3 de março de 2011
Canteiro de palavras ( VIII ) - Beira Baixa, outros tempos
No centenário da morte do autor de "Os Gatos"
Homenagem a Fialho de Almeida e um convite à reflexão - HOJE
"Conhecem todos a índole e condições sociais da gente da Beira Baixa. Salvo excepções restritas, é uma raça de miséria, avergoada de superstições e de ignorância, comendo mal, vivendo imundo, e guardando ao dinheiro dos ricos uma servilidade de escravos e cães esfomeados. Até Castelo Branco a paisagem é horrível, cheia de estevas e mato curto, sobreiros, algum castanheiro raro na margem dos barrancos, as plantações exíguas, algum olival, e searas de dois em dois anos na terra roçada das estepes, desertas e estéreis como uma Arábia silvada de anátemas. É daqui o beirão trigueiro, ossoso, de olhos ardentes, coa espinha curva e as pernas cambadas, que mais ou menos todos temos visto descer em récuas para os trabalhos agrícolas do Alentejo - tão diferente do camponês da Beira Alta - ou vir das ceifas de Espanha, com a casaqueta de saragoça presa por um só botão ao pescoço, os tamancos nos pés, o cobertor no varapau, o lenço amarrado na cabeça, o cabelo corredio, e a barba rente - tipo de sacrista e de avaro, com a fala tardia, a ideia enferrujada, uma humildade abjecta no meio riso dulceroso por um largo tirocínio de fome e pontapés nas terras dos proprietários e ricos-homens. Entra-se na cova da Beira, e os campos mudam, luxuriantes veigas afestoam o chão de ridentíssimos paraísos, cada qual tem o seu pedaço de terra; a raça melhora, certo, em condições de vida vegetativa, mas nem por isso as de vida de relação rompem a subalternidade vil que atrás fixámos. São as mesmas falas baixas, a mesma cobardia de fitar olhos nos olhos, o mesmo envilecimento consciente da dependência, a mesma primitividade avara de costumes, a mesma ignorância, o mesmo fatalismo, o mesmo lamber o chão que os ricos pisam.
(...) Quanto ao operariado das fábricas, se alguém o julga antípoda da irracionalidade dolorosa dos seus irmãos agrícolas, basta-lhe saber que raríssimos deles sabem ler (1), e que o socialismo insciente de homens vivendo na dependência de patrões os não impede de terem sobre a moral ideias licenciosas, e de fazerem pairar sobre a religião este princípio: de que para ganhar o céu é preciso pagar todas as semanas um vintém às sociedades beatas das Graínhas."
(1) "... Dos 5000 operários que acima indicamos, sabem ler, apenas: do sexo masculino 617, do sexo feminino 52.
É preciso fechar os olhos a esta miséria em que o Governo, o Município e as pessoas ilustradas da cidade têm grandes quinhões de responsabilidade. A Covilhã, pode dizer-se, é uma cidade de cerca de 20 000 habitantes que mal sabe ler."
"O Século", de 4 de Outubro.
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