sexta-feira, 12 de março de 2010

O buda de Wait Traimitr

A preocupante realidade vivida na década de 70 do século passado espreita-nos de novo, como sabemos, agora com outro figurino.

Do livro que, em 1980, publiquei (À Sombra da Minha Latada), uma breve transcrição, na altura em que, de novo, andamos a rondar casas de penhores, nacionais e internacionais.

Com as católicas preocupações que se imaginam...aí vai:

"Desorientado rumei a Oriente. Engalanei o físico com o que de melhor tinha nas gavetas e depois de ter tirado algumas divisas para a viagem (as últimas que me haviam sobrado de umas idas a Badajoz, em 1975 - parti! Ouvira falar de um buda de ouro, algures em Bangkok e, não hesitando, pus-me a caminho com o forte desejo de dar um contributo para a resolução dos graves problemas financeiros nacionais.

Chegado à cidade, porém, imediatamente me apercebi de que a minha missão não seria fácil, pois nem as gentes eram ricas, nem os cheiros reinantes eram a alfazema.

Procurei, nessa ocasião, disfarçar este ar europeu, aligeirando o vestir. E assim, tão às escondidas quanto possível, consultei guias turísticos e lá fui até Wat Traimitr de óculos bem escuros para não me verem os olhos de ocidental.

Contrariamente ao que desejara ao sair de Lisboa, dei-me, então, conta de uma quase muitidão aguardando vez para observar o buda. Contudo, esperei com paciência a oportunidade de me aproximar. A meu lado, pessoas de todas as cores esperavam...

Apercebi-me, nesta altura, todavia, de que era prática entrar descalço no templo. E, receando o pior - corei: a única peça de roupa que me identificava como português estava encoberta e era essa que tinha que pôr "à vela". Indaguei, por isso, com o maior cuidado se tinha mesmo que ser e, face à impossibilidade de recuo, sem perder o controlo, tirei as botas e, com elas, as peúgas rotas no dedo grande que, ao engalanar-me à partida, não conseguira evitar na minha bagagem para "tailandez ver".

Foi, pois, com o respeito que só a verdade da nudez torna absoluto que, calos ao léu, entrei humilde e temente, em Wat Traimitr e me prostrei aos pés das Figura Enorme, enquanto meus pensamentos se voltavam para a Ocidental Praia que deixara distante e sorumbática, contando as últimas barras de ouro depositadas nos cofres do mui pobre e digno Banco de Portugal.

Diante de mim estavam agora cinco toneladas, cinco mil quilos do precioso metal - feitos buda. Olhei, enfim, à volta para ver se alguém estava a reparar no que eu fazia e, cristão, por amor à minha terra, logo ali prometi converter-me ao budismo em nome dos mais altos e sagrados princípios patrióticos.

Descalço, olhos esbugalhados, fralda de fora e de joelhos, mil vezes me curvei e outra tantas rezei o que sabia do catecismo da Primeira Comunhão, na doce esperança de que o buda compreenderia a desgraça. Porém, a Veneranda Imagem nem só uma lágrima verteu, nem só um grama deixou escorrer daqueles olhos profundos e sabedores com que eu sonhara no meio da minha desorientada experiência de português desta segunda metade do século XX.

Contudo, ainda me pareceu, a certa altura, ouvir-lhe dizer:

- Se não estivesse aqui tanta gente, Irmão, eu coçava a barriga e talvez isso te desse sorte... Assim, não posso: se a coço em teu favor, que és ocidental, logo os orientais se acercam de mim rejeitando o arroz que lhes é dado...

Compreendi.

Olhei, apesar de tudo, implorante, e mais uma vez, o buda, pensei no meu País, mas, ao ver-me, pouco a pouco, rodeado de bonzos e de criaturas tão palidazinhas, tão amarelas - perdi a coragem de qualquer aventura e... desisti de o trazer comigo para Portugal - onde vou, como é óbvio, na primeira oportunidade, mandar passajar as minhas lusitanas peúgas."

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