ENTREVISTA com Carlos Morais José
Carlos Morais é, neste painel de entrevistados, o mais jovem. São estas as suas ideias "na véspera" da mudança...
Para começar, fale-me de si...
Chamo-me Carlos Morais José, estou em Macau há cinco anos, sou português, venho de Lisboa, tenho formação académica em antropologia, que nunca pratiquei. Não me considero um antropólogo, porque não exercitei a profissão. Fui jornalista.Neste momento, vivo da escrita. Escrevo , já não tanto como jornalista. Escrevo o que me pagam para escrever... Entretanto, não posso dizer que sou escritor, porque não sei se ainda há escritores, mas vivo do que escrevo. Várias coisas: desde publicidade a artigos para revistas de âmbito cultural.
Tenho já alguma experiência na organização de eventos culturais, como, por exemplo, no ano passado, em que organizei, em Macau, as Comemorações do Ano Lunar do Porco. Fiz uma exposição etnográfica sobre o Ano Lunar do Porco e vou fazer outra este ano...
Dito isso, estão criadas as condições para me responder a uma questão: o que singulariza Macau das regiões vizinhas?
O que singulariza Macau das regiões vizinhas é a presença portuguesa.
Mas o que é "isso?"...
Em primeiro lugar, Macau tem sido, ao longo dos tempos, um santuário de refúgio e liberdade, no contexto da região.
Existe Macau, que é o nome português desta terra. Existe Ou Mun, que é o nome cantonense. Existe A-Man, que é o nome mandarim. Macau é, de facto singular, Ou Mun é menos singular, A-Man não é, praticamente, nada singular. Ou seja, se Macau é um sítio diferente, penso que isso deve-se, basicamente, à presença dos portugueses e à existência de uma comunidade macaense. Portanto, da mistura de várias raças que têm feito de Macau um sítio diferente do resto do mundo, onde duas comunidades convivem, não se amando, mas deixando-se existir. Para isso contribui o espírito chinês, a maneira de ser do povo chinês, que lida com uma relativa indiferença com os estrangeiros e que nos permite viver e sobreviver aqui.
O espírito de convivência dos portugueses entra aí pouco?
Entra muito pouco. Em quatrocentos anos... Mas isso é natural, porque fomos os únicos que entrámos... Apesar de tudo... Apesar de tudo, constituímos uma etnia.
Vamos ver como é que os povos contactaram. Contactaram através das suas margens, não contactaram através do seu centro. Ou seja, não era propriamente a "entourage" do governador que se misturava com os chineses, nem eram os chineses ricos que deixavam
as suas filhas casar com os portugueses, mas sim, populações de margem, como os soldados e as raparigas de origem familiar modesta, que não tinha vergonha de casar com um estrangeiro, porque casar com um estrangeiro é, na China, obviamente, uma vergonha.
O que singulariza Macau... Só lhe posso falar do ponto de vista português. Para mim, a presença portuguesa baseia-se na sua ausência... Ou seja, os portugueses em Macau vivem uma presença-ausência, na medida em que só podem cá estar enquanto ausentes e, portanto, não tiveram um papel fundamental na condução dos destinos desta terra. É, pois, uma presença-ausência. Mas foi esta interpenetração que nos permitiu estar cá 400 anos sem guerras, a não ser umas pequenas escaramuças, que não tiveram muito a ver connosco...
Porque outros povos quiseram estar ausentes?...
Foi. Esta maneira de estar dos portugueses em Macau, foi uma maneira que nós, quase intuitivamente, percebemos que era possível: permanecer na China, servindo os interesses dos chineses, mas não constituido para elesuma afronta... Foi essa a grande sabedoria, feita de muita gente, de muito sofrimento, de muita abnegação e, sobretudo, de muita resistência ao ser português, isto é, mantendo-se português até à última consequência, sem apoio nenhum. Macau foi um sítio completamente desapoiado durante todo o nosso Império. O próprio Salazar nunca considerou este território importante. Era um local de jogo industrializado, com os casinos do Stanley Ho. Macau, como se fosse uma fonte de rendimento, é que levou Portugal a interessar-se pelo seu dia-a-dia numa altura em que já tinha perdido África. E aí é que há uma viragem - e interesse pelo território.
O que Macau tem também de singular é que foi palco de passagem e de vida de pessoas extraordinárias.
Gostava que me falasse de alguns nomes que aqui se afirmaram ao longo de séculos...
Vou contar-lhe uma pequena história, que é a história de um homem - só para ver como é que os portugueses se "desenrascam" no meio de uma situação histórica concreta.
A grande riqueza de Macau do século XVII, e que foi o que fez com o território tivesse alguma pujança, era o facto de a China ser uma importante consumidora de prata e não ter relações com o Japão, que era o produtor desse metal.
Havia uma guerra, uma desconfiança muito grande, entre o Japão e a China, que, de resto, foi característica ao longo da história.
Então, os portugueses de Macau faziam tráfico de prata do Japão para Macau e de Macau vendiam para a China.
Nos finais do século XVII, o Japão, contudo, fecha os portos ao comércio com o estrangeiro... Crise!
Há, então, um tipo, chamado Francisco Ferreira, que faz isto: interroga-se onde é que havia prata no Oriente. Disseram-lhe que era nas Filipinas...Porém, as Filipinas não podiam negociar com os portugueses porque nós tinhamos uma guerra com a Espanha, por causa de 1640... Então o gajo fez isto: foi para Java, casou com a filha do rei e conseguiu pôr o fulano a comprar prata às Filipinas para trazer para aqui e... vender à China.
Agora, que prata é esta? É prata mexicana, que é mandada pelos espanhóis do México para Macau. A moeda mexicana chama-se pataca e por isso é que a moeda de Macau é a pataca.O que circulava em Macau como moeda era a pataca.
Este Francisco Ferreira, que não é nenhum herói, é um português, transmite-nos, assim, uma forma de ser português.
Fernão Mendes Pinto...
Exacto. Agora outro género de presença portuguesa em Macau.
Penso que Macau, até há muito pouco tempo, era o único sítio do mundo em que todas as famílias que apareciam nas notas eram poetas ou escritores. Quando cá cheguei, ainda era assim...
Nas notas de 50, era o Camões, nas notas de 100, era o Camilo Pessanha, nas notas de 500, era o Venceslau de Morais. Nas notas de 1000, penso que era outro escritor... Quando cá cheguei já não era...
Há, portanto, uma ligação intrinseca entre Macau e a poesia portuguesa, nomeadamente, através de um dos maiores expoentes da poesia portuguesa que é o Camilo Pessanha e que considero, de certo modo, um poeta de Macau. Acho que há muito na sua poesia, não tanto a nível de referências exóticas, porque penso que ele, inteligentemente, e como poeta que era, sabia que as referências exóticas são ridículas, são superficiais, são uma coisa ligeira: os lugares comuns e fáceis dos lábios de Jade, da pele como seda ou das mãos lascadas, isso é superficial.
Camilo Pessanha sabia e escreveu, inclusivamente, que a verdadeira poesia é sempre étnica, no sentido em que tem sempre ligação a um povo e exprime a sua alma.Só que a alma do povo português não é uma alma que se confine ao rectângulo atlântico. A alma do povo português é uma alma muita mais vasta do que isso. Aliás, é uma alma universal e neste sentido há determinadas leituras que Camilo Pessanha faz do mundo, que penso que só as pôde fazer depois de uma estada em Macau, nomeadamente, no que tem a ver com o exílio, no que tem a ver com o abandono, com a saudade, falando no sentido um pouco de Teixeira de Pascoais.
Macau marcou de tal maneira Camilo Pessanha que acabou por ficar aqui durante trinta anos e aqui morrer.
Nessa linha, acha que era possível enumerar iniciativas com direito a compêndio de história?
Há uma que é a chegada, mas que já está ficcionada. Mas eu gostaria de a ficcionar ainda mais...
Qual é a sua versão?
A minha versão é de uns tipos barbudos, mal vestidos, rotos, cheios de fome, que vinham de algures, daí da costa do sul da China, sem saber para onde é que vinham e que, de repente, chegam a um porto acolhedor e desembarcam junto ao templo de A-Má.
Dentro desse templo está uma figura feminina. Penso que terá havido um sentido de protecção... Mas isto é uma interpretação completamente selvagem - e ficcionada...
Portugal está completamente adormecido aos pés da estátua pagã, adorando-a como Nossa Senhora...
Mas há mais exemplos: tem uma figura em Macau que é das mais interessantes que passaram pelo território, com todos os defeitos que a história lhe reconhece, que é o governador João Maria Ferreira do Amaral. Uma figura marcante na história. Para mim, Ferreira do Amaral é o mito da fundação de Macau, fundação já tardia. Porquê mito? É mito por ele próprio. A sua figura é de tal maneira romântica que tem todas as características mitológicas para ser um fundador.
O homem não tinha um braço, por exemplo. Vestia farda e gostava de dançar, tinha um macaco que vestia de libré e que o servia à mesa... Isto já é suficiente para o tornar uma figura, não digo ao nível de um Rómulo, mas, dentro da dimensão de Macau, de um fundador. E, de facto, ele foi um fundador político. Ou seja, aproveitando o facto de a China estar fraca, por causa da Guerra do Ópio e de Hong-Kong ter acontecido e haver uma fraqueza interna na China, expulsa as alfândegas chinesas, que até ai existiam, e funda Macau como colónia, como espaço livre, separado da China, de facto.
E, ainda por cima, de seguida, é assassinado pelos chineses, que lhe cortaram a cabeça, levando-a para o outro lado das Portas do Cerco, por onde andou não sei quanto tempo até que a devolveram...
Nos anos 40, o regime salazarista fez-lhe uma estátua, que foi retirada há cerca de três anos, pelo actual governo do território com o pretexto do reordenamento da Praça...
Todos os projectos que apareceram para reordenar a Praça, nenhum deles contemplou a existência da estátua.Que era violenta, de facto. Amaral estava numa atitude marcial, agressiva e penso que debaixo das patas do cavalo havia um dragão... Esta segunda queda do governador Ferreira do Amaral também é significativa, porque coincidiu com muita coisa... Coincidiu com a morte do "leader" da comunidade, que tinha falecido uns meses antes: Carlos Assunção. Isso significou também o fim desse poder da comunidade macaense.
(cont.)
Subscrever:
Enviar feedback
(
Atom
)
Caro Marcial,
ResponderEliminarPor curiosidade, onde arranjou esta entrevista? Não me lembro de a ter dado, mas as palavras sãq obviamente minhas.
Obrigado pelo interesse e um abraço
Carlos Morais José
Caro Carlos Morais José
ResponderEliminarÉ um prazer "senti-lo" desse, deste lado. Passaram-se os anos suficientes para que as suas palavras ganhassem interesse histórico: 15! E está tudo certo, a meu ver.Faço questão em não alterar nada. Recordo-me muito bem da nossa conversa - que, como se lembrará, foi gravada.Em princípio, destinava-se a publicação em livro, como todas as outras.Mas a escassez de fundos, deu "nisto": agora que aos 72, "virei" cibernauta...A sua entrevista, como as demais, é um documento a que aconteceu o que acontece, como dizem, ao Vinho do Porto:enriqueceu-se!Entretanto, a respectiva transcrição completar-se-á amanhã ou depois.Mas, deixe que lhe diga, sem desprimor para as outras, vejo-a como "a lufada de ar" jovem, que estava a fazer falta...Vá dando notícias. Eu por aqui ando, tão disponível quanto possível, mas sempre para o abraço que, para já, lhe deixo. Feliz pelo reencontro. E na esperança de que, pouco a pouco, os "Subsídios" possam dar achegas aos que escrevem História.Aos que têm interesse nas coisas do Oriente, procurei, em devido tempo, "alertar" para a "ruadojardim". Ajude-me a multiplicar o m/ endereço e os conteúdos com que concordar.Comente!Renovo o abraço cordial. Marcial Alves.