sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

D'ouro

Quem, à beira Douro, está de frente para Gaia, depois de ter serpenteado, em jeito de bola de jogo americano, dos Clérigos às vielas a cheirar a bacalhau, cá de baixo, do Porto castiço, logo percebe, se o passeio é em dia quente e de folgar, que aquela gente toda, junto ao muro ribeirinho, se divide em dois grupos: a que está à esquerda da escadaria de acesso ao rio é jovem e prepara-se para nadar, que o saneamento por aquelas bandas é incompleto e, mal por mal, antes o Douro; a outra, a que se pespega à direita dos degraus sujeitos às lambidelas da água, goza as delícias da pesca, apanhando taínhas para a semana toda, esquecendo que a fartura nasce do esgoto que ali descarrega isco farto e barato para peixe tolo. É o espectáculo da pesca à linha, com tantos basbaques como "profissionais" que se acotovelam, embaraçando linhas e gestos.

Em terra, minuto a minuto, o peixe enganado na sua boa fé, salta em dramática agonia, ante a risada folgazona dos catraios de tronco nú que correm de um lado para outro. Parece ouvir-se o último grito de socorro das taínhas-acrobatas, suplicando o regresso à água deixada há instantes.

Ali perto, na praça abarracada montada de costas para Gaia, alguém se esganiça:

- Tenho sardinha da grande!...

Mas para quê sardinha? a taínha é de borla e não falta...

Chegam "franciús", "bifes" e alemães. Vêm, por recomendação das entidades oficiais, ver o Douro de que fala o vinho, desde o tempo dos rabelos a sério. Querem embarcar no barco de recreio que os leve à descoberta das árvores das patacas dos seus antepassados. A Europa aproxima-se assim das águas do rio e nem acredita ao dar-se conta de tanta abundância de peixe. Fotografa o que observa, ignorando esgotos. "Portugal vive bem...", pensa. Tranquila, faz-se então ao rio, entrando no Ribadouro, máquina de tirar retratos à tiracolo, fralda da camisa de fora e um largo sorriso nos lábios. A bordo reina a felicidade: "on parle français", "english spoken" e, se necessário, também há quem saiba português. "Oh yes!" Canta Frank Sinatra, "strangers in the night", enquanto, em plena tarde, o barco fluvial desce na direcção da ponte D. Maria. Vão ser mais duas horas de cruzeiro ao som de música dos outros, por entre vinhedos em silêncio, quais procissões especadas numa e noutra margem da estrada líquida do "Port wine", que se anuncia sempre que pode, à mistura com o esconde-esconde do casario semeado entre os rolos de algodão doce e colorido das copas do arvoredo. Anda nisto mais de uma hora para lá e outra para cá, até ao Cais da Ribeira.

Foto M.P.
O espectáculo mais emocionante, contudo, tem-no ao regressar ao Porto, quando o entardecer se anuncia. Já ninguém liga à música de bordo a tender para o anglo-saxónico; a cidade, bem nossa, aí está de novo, voltada para o rio, encimada pelos dedos da muralha fernandina, tentando preservar a história que é orgulho
pátrio. A Europa, surpreendida pela fartura da partida, revê-se num passado que também é seu. "Portugal é um país rico!", diz-se, em várias línguas, à saída, no portaló. "Repara como eles (traduzo aqui esta nota, repetida em diversos idiomas e em uníssono), repara como eles agora até estão a deitar ao rio o peixe  que pescaram a mais...", comenta-se. Tudo o que é d'ouro é assim..., acrescento eu.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Seguidores