Foto de Mónica Ponce |
"Quando na sonhada cidade das patacas lhe fecharam a fábrica onde, anos a fio, haviam trocado trabalho por moedas, e começou a ouvir falar de fome, foi-se a correr à horta e plantou mais um braçado de couves.
Depois, com as coisas a irem de mal a pior, pôs-se a caminho do alto da serra, sozinho, pensando nas voltas a dar à vida. Até onde o olhar lhe alcançava, reparou, então, num nunca mais acabar de pequenas propriedades, ponteadas de casas, modestas umas, jeitosas outras.
Pela primeira vez, sentiu que o silêncio circundante era quebrado pelo saltitar gracioso da água limpa que lhe passava a cem metros, entre eucaliptais e vinhedos. De súbito, ouviu um tiro ecoar na imensidão da encosta e um cão que ladrava. Fora coelho, pela certa, que tombara.
Continuou a subir, deixando atrás de si cada vez mais longe a fábrica que já não fumegava. Chegou mesmo até à citânia de Briteiros onde lhe haviam dito que tinham vivido antepassados seus. Contemplou as ruínas e não lhe achou nada de especial, a não ser que não habitava ali ninguém, salvo o guarda.
Voltou, então, à aldeia e, sem saber porquê, decidiu plantar umas arvorezitas de fruto e começar a engordar uma porca para criar.
Mais tarde, deu um pulo à cidade e, na fábrica, quase só paredes, ainda lhe deram uns tostões de indemnização, que aproveitou para comprar mais umas sementes para a horta.
Entretanto, na região, haviam fechado todas as fábricas e quem queria ver o povo era no campo, em redor da citânia, umas léguas adiante, cultivando para sobreviver.
O Porto passara a ser uma cidade longínqua e de Lisboa ouvia-se falar. De resto, as notícias que chegavam à horta eram estranhas e contraditórias. Quiçá mesmo aterradoras: dizia-se que agora na capital, os pobres comiam tijolos cor de cenoura e pedras das calçada, muito brancas, em forma de batatas, enquanto os ricos ainda saboreavam, em jeito de sobremesa, pudim de caules de couve portuguesa, à moda do Minho.
A fome instalara-se nas zonas urbanas. Os combóios para as aldeias iam agora à cunha. Lisboa, Porto, Braga e outros centros começavam, a ficar às moscas, preparando-se para dar que fazer aos arqueólogos dos tempos a haver em que, como nas citâneas conhecidas, já não houvesse mais do que pedras ou betão sobre betão, a emoldurar velhos esqueletos dos homens e mulheres que não tinham sido capazes de apanhar o combóio para as hortas distantes e de sobrevivência garantida."
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